1. Bach - Scriabin - Almeida Prado: o que conduziu a este alinhamento para o recital que apresentará nos Reencontros 21?
A minha intenção foi a de conceber um programa multifacetado mas coerente na sua construção, com uma direção cronológica, composto por obras que explorassem de diferentes formas uma profunda mensagem de carácter espiritual conferida pelos compositores. Nesse sentido, parece-me que estas três obras se conjugam muito bem, havendo entre elas um fio condutor com o potencial de cativar o interesse e a atenção do público ao longo de todo o recital. O programa oferece também uma perspetiva interessante de evolução musical, uma viagem sonora desde o período barroco, passando pelo romântico tardio e chegando a 1974, ano em que Almeida Prado escreveu as suas “Cartas Celestes”. Esta evolução é verificável não só na evolução da linguagem musical, mas também na própria abordagem ao piano, o que faz deste alinhamento um desafio estimulante não só para o público mas também para o pianista.
2. O que o motivou a trabalhar a peça “Cartas celestes" do compositor brasileiro?
Entrei em contacto com a obra do compositor brasileiro Almeida Prado por altura dos meus estudos em Karlsruhe, onde há um grande intercâmbio com universidades e músicos brasileiros. A sua música impressionou-me desde o primeiro instante, pela originalidade despretensiosa e qualidade do material sonoro, pelos interessantes temas sobre à volta dos quais se desenvolve (religiosos, ecologistas ou nacionalistas) e pela qualidade da escrita para piano, que possui a marca inconfundível de um compositor-pianista.
O mundo natural, e particularmente a astronomia, exerce em mim um enorme fascínio, pela beleza dos seus fenómenos e pelo mistério da fronteira do desconhecido. As “Cartas Celestes” representam exactamente uma música do cosmos, uma ilustração sonora do universo, um misticismo celestial. Esta peça permite-me assim fazer a junção da arte com a ciência, do mistério sonoro com o mistério do cosmos e de fazer da própria performance musical, uma viagem de exploração e descoberta.
3. A apresentação desta obra será acompanhada de um vídeo da sua autoria. Pode falar deste seu trabalho?
Almeida Prado escreveu as “Cartas Celestes” em resposta a uma encomenda do Planetário de São Paulo, onde a obra complementaria um dos espectáculos astronómicos. A junção do sonoro e do visual está portanto na génese da obra e presente em todo a sua notação, tendo o compositor explicitado claramente quais os objectos e fenómenos astronómicos representados em cada secção. Parecia-me por isso, que a experiência do público beneficiaria grandemente se essa componente visual lhe fosse apresentada, podendo assim visualizar a cada instante os corpos celestes que as “Cartas” pretendem ilustrar, associando os motivos e os efeitos musicais descritivos que os representam.
Assim, realizei um vídeo que pretende transformar a Sala 2 da Casa da Música num autêntico planetário, no qual o público possa embarcar numa viagem de som e luz pelo cosmos da imaginação.
4. Depois do mestrado em Friburgo à volta de música de Scriabin, escolheu Bruxelas para desenvolver o seu doutoramento sobre o mesmo compositor. O que procura explorar na música de Scriabin?
A música de Alexander Scriabin acompanha-me desde o início do meu percurso pianístico, sendo um dos compositores que mais frequentemente toco e cuja música mais me seduz.
A obra de Scriabin é fascinante a vários níveis: pelo notável desenvolvimento da sua linguagem musical ao longo da sua curta vida, pela força do seu conteúdo emocional, pelo crescente misticismo e simbolismo da sua obra, pela associação da cor ao som e por representar uma Arte futurista e utópica.
A música de Scriabin é um campo fértil para a imaginação e criatividade, cuja exploração não se esgota nunca nem se delimita nem inibe. A esse processo de descoberta infinita dou agora continuidade no Conservatório Real de Bruxelas, onde me debruço sobre as 10 Sonatas para Piano, o conjunto de obras mais representativas de Scriabin. Procuro com este doutoramento um conceito interpretativo que sintetize a ideia específica de Scriabin para uma Arte Total: uma arte sonora, visual e mística, e que ponha esse conceito em práctica na performance das 10 Sonatas.